00/12/79 • COBRANÇA EM FAMÍLIA
Década de 70 > 1979
Estava na minha frente, para ser consultada, uma bela senhora de cerca de 40 anos, recentemente viúva de um suicida. Junto com ela estavam sua sogra, um jovem aparentando 18 anos – um belo rapaz com um futuro prometedor – e uma jovenzinha me parecendo leviana, porém de bom aspecto. Vi que se tratava de uma família.
– Veja o que pode fazer pela minha sogra, Tia Neiva. Vim para consolá-la, porque Lúcio se suicidou e ela está sofrendo muito (Lúcio era filho da anciã). Ela está me dando muito trabalho. Vê se a faz esquecer, faça qualquer coisa que me dê sossego!
– Sim, – disse a anciã – a minha maior dor é saber que meu filho não tem salvação. Foi tão bom!… Não sei como pode fazer isso!
A viúva arrematou depressa e com desprezo pelo marido:
– Deixou-nos na pior situação. Enfim, traumatizou todo mundo!
Disse o rapaz:
– Sim, Tia Neiva, pelo amor que meu pai tinha por nós não é fácil entender o que ele fez e nem tampouco para mim e minha pobre mãe viver sem ele. Foi horrível o que passei, pois, no fim, ele mostrou que não gostava mesmo era da gente, Tia Neiva. Minha avó, coitada, pensa no quanto ele irá penar. Nisso eu não acredito muito, pois sei que Deus não irá deixar, porque ele era bacana mesmo, compreendia a mim mais do que todo o mundo. Quando eu não estava satisfeito com as coisas da mãe, ele sempre me dizia que o filho que não gosta da mãe nunca se realiza. Era bacana mesmo… Não sei como foi tão fraco!
Depois, ficamos calados, só ouvindo os soluços da vovozinha.
– São os restos do carma, logo a senhora estará com ele – disse eu com tranquilidade e falando com carinho à pobre sogra.
A viúva começou a tagarelar sem parar e sem qualquer sentimento de amor:
– Como, Tia Neiva? – falou a anciã – A senhora não entendeu que ele se suicidou? Deu um tiro nos miolos, e agora só Deus sabe por onde anda meu filho!… Meu pobre Lúcio! Não sei. Um homem tão culto… Quis ser médico, e foi. Quis seguir a mesma profissão do pai, pobre pai, pobre marido meu, que Deus o tenha também em bom lugar. Era como Lúcio, seu filho, um homem bom. Morreu do coração. Foi um golpe duro para mim, porém não tão duro como este do meu filho. Sim, Tia Neiva, o meu mal foi ter me casado com outro. Não dei satisfações ao meu Lúcio e este atual marido não combinava com ele. Por causa deste infeliz, Lúcio estava afastado de mim. Lúcio saiu de casa e só voltou quando ele foi embora. Será, Tia Neiva, que foi por isso que ele se suicidou? Guardou toda a vida esta mágoa?
– Será que não foi pelos atritos com Lúcio Júnior? – perguntei.
– Não, – respondeu a anciã – ele até queria a grande herança de meu marido. Lúcio, coitado, ficou decepcionado comigo. Sempre que podia, me falava: o Homem nunca pode pensar nos defeitos da mãe. Mas ele sempre me beijava, ria e ficava por isso mesmo. Acredito que era só da boca para fora.
Terminado o diálogo, vi que o pobre suicida se fora para evitar desgraça maior, pois o quadro daquela gente era o pior possível! Somente o jovem sofria, pois perdera o pai para se salvar.
Chamei o Tiago e recomendei um trabalho. Fiquei observando se Lúcio se manifestava por ali, porém ele não veio. Obsessor? pensei. Fui, então, encontrá-lo no Canal Vermelho.
Aproximei-me dele e disse:
– Estive com sua família, seu filho e sua filha, seus dois filhos.
– Só tenho Fernando e Fernanda. O que Fernando pensa de mim? A senhora sabe?
– Sei – respondi – bem como também sei o que o levou ao suicídio.
– Falou com ele? – perguntou-me desesperado.
– Não, tenho um juramento na Terra que me obriga a respeitar os sentimentos dos outros e seria incapaz de denunciar alguém.
– Fui suicida e, no entanto, aqui, ninguém me condenou por isso!
– Sim – disse eu – foi aquilo que eu aprendi: a respeitar os outros.
– E minha mãe?
– Sua mãe, Lúcio, sentiu e sente a maior dor!
– Meu Deus! gemeu Lúcio.
– Lúcio, sua mãe optou pelo homem que amou, quando você partiu pela primeira vez, e a mãe não tem porque optar senão pelo próprio filho.
– Sim, Tia Neiva, foi horrível no dia que meu padrasto me esbofeteou, na frente de minha mãe, dizendo que ele ou eu ficaria naquela casa, e minha mãe disse que ia me levar para a casa de minha avó, mãe do meu falecido pai. Tive uma decepção tão triste que nunca mais me recuperei, apesar de todo o carinho de minha avó. Minha mãe não me quis, preferiu ficar ao lado do homem a quem amava. Mesmo traumatizado e cheio de tristeza, casei-me. Minha esposa parecia me amar muito. Tivemos dois filhos maravilhosos, Fernando e Fernanda. Tudo corria aparentemente bem. Foi então que entrando na casa de Marcelo, meu maior amigo, ouvi a voz de Edna, minha esposa. Marcelo veio ao meu encontro e perguntei de quem era aquela voz. Ele gaguejou e disse que não era ninguém. Desci e fiquei em frente à casa, até que saíssem. E quem saiu foi ela, a própria Edna! Fiz uma viagem, porém aquilo não saía de minha cabeça, pensando em tudo que um homem traído em seu casamento pode pensar. Ela não se modificou e Marcelo também persistiu no erro. Eu não quis mais ver o que estava acontecendo. Tive vontade de matar os dois, porém decepcionar Fernando com sua própria mãe não era possível. Se eu morresse, ele nunca ficaria sabendo da sua traição. Pensei comigo: se tudo estiver bem para Fernando, espero aqui o que Deus quiser. Deus há de me perdoar por minha pobre incompreensão. Tenho certeza de que, um dia, Deus me perdoará!
É verdade, pensei. Fernando estava sem complexos, vivendo sua vida e amando ainda mais sua mãe. Estávamos bem, quando ouvimos a campainha da chamada.
– Está vendo para onde irei? – perguntou-me Lúcio.
– Você vai para o outro lado deste Canal – respondi.
Ele partiu, e soube que tinha ido para reencarnar e pagar na carne o seu erro de se suicidar. E qual a sua pena? Voltará com uma forma de disritmia. Perguntei quem seria sua mãe. Sua mãe será novamente a mesma velhinha, porque rejeitou o direito de criá-lo, fazendo assim seu primeiro trauma, por ter preferido o homem que amava, deixando que ele fosse para a casa de sua avó.
O desequilíbrio de uma mãe desajusta uma família.
No outro sábado, aquela família voltou para falar comigo e, vendo-os sentados à minha frente, tive vontade de dizer tudo: que tinha me encontrado com Lúcio no Canal Vermelho e que era ela a única responsável pela sua morte.
Como sempre me limito, apenas, a proteger, porque entreguei meus olhos a Jesus para nunca escravizar ninguém com palavras ou por insinuações, e muito menos por julgamento.
Fico frustrada pensando nas palavras de Pai Seta Branca: ajudar, comunicar sem participar, não dividir nem tomar partido das pessoas!